terça-feira, 29 de março de 2011

Mulher arrastando uma furiosa bicicleta sobre a ponte outonal de Saint Exupéry, em Paris

Os secos braços de Marjorie forçam a furiosa marcha da bicicleta sobre a ponte fria de Saint Exupéry, em Paris. A ponte é feita de pedras. As pedras magoam muito quando batem com velocidade. As pedras também magoam muito quando alguém lhes bate furiosamente. Da cara de Marjorie escorre sangue para o rio.


(No Outono, o Sena reclama afogados. Todos os anos, quando água mais fria banha as margens, o entristecimento da luz empurra gente para o fundo do rio, onde o lodo as recolhe em braços quentes. O Sena é um rio de mulheres, sobretudo; rejeita os homens: nadam para as margens ou agarram-se aos barcos de recreio que pululam de turistas encasacados. [Quis a mão de Deus que Henri de Vicariate encontrasse refúgio num desses barcos, o La poulette, onde duas japonesas (chinesas, tailandesas?), Ling (?) e Lang (?), melancólicas órfãs recolhidas pelo engenheiro que acertou o relógio nos primeiros telemóveis, lhe sorriram e o fotografaram como de artista famoso se tratasse. Henri de Vicariate devolveu o sorriso. Na margem, Nougete procurou desesperadamente o seu amado.])


Marjorie caminha sobre andas metálicas, alongando as pernas ao chão com um gafanhoto. Baixa-se muito para alcançar com as mãos o guiador, formando angular corcunda nas costas. À cabeça transporta um chapéu amarelo enfeitado a penas de pavão.


(No Outono, o Sena sussurra melodias de embalar; dizem convocar corações partidos.


Eis alguns exemplos:




  1. Elena Cardailac – desaparecida no Sena a 27 de Outubro de 1879. Não mais foi vista.

  2. Isabelle Marival - desaparecida no Sena a 2 de Novembro de 1945. A 3 de Novembro foi vista, nua, caminhando sob a luz crua da Igreja de Notre Dame.

  3. Adeline Marie – desaparecida no Sena a 17 de Novembro de 1899. A 19 de Novembro saiu do rio e mordeu um homem que passeava na margem. O homem morreu.

  4. Michelle Chapelle – desaparecida no Sena a 29 de Novembro de 1900. Entre os dias 3 e 4 de Dezembro, sentou-se, imóvel, num banco do parque público de Saint Exupéry.)


Marjorie passa em frente ao anexo pardacento onde Krief sacia a fome nas fartas mamas de Nougete. Do outro lado da rua, e através das janelas do Hospital de Saint Exupéry, repara Marjorie, uma enfermeira esbofeteia violentamente uma mulher.

Mulher arrastando uma furiosa bicicleta sobre a ponte outonal de Saint Exupéry, em Paris

Os secos braços de Marjorie forçam a furiosa marcha da bicicleta sobre a ponte fria de Saint Exupéry, em Paris. A ponte é feita de pedras. As pedras magoam muito quando batem com velocidade. As pedras também magoam muito quando alguém lhes bate furiosamente. Da cara de Marjorie escorre sangue para o rio.

(No Outono, o Sena reclama afogados. Todos os anos, quando água mais fria banha as margens, o entristecimento da luz empurra gente para o fundo do rio, onde o lodo as recolhe em braços quentes. O Sena é um rio de mulheres, sobretudo; rejeita os homens: nadam para as margens ou agarram-se aos barcos de recreio que pululam de turistas encasacados. [Quis a mão de Deus que Henri de Vicariate encontrasse refúgio num desses barcos, o La poulette, onde duas japonesas (chinesas, tailandesas?), Ling (?) e Lang (?), melancólicas órfãs recolhidas pelo engenheiro que acertou o relógio nos primeiros telemóveis, lhe sorriram e o fotografaram como de artista famoso se tratasse. Henri de Vicariate devolveu o sorriso. Na margem, Nougete procurou desesperadamente o seu amado.])

Marjorie caminha sobre andas metálicas, alongando as pernas ao chão com um gafanhoto. Baixa-se muito para alcançar com as mãos o guiador, formando angular corcunda nas costas. À cabeça transporta um chapéu amarelo enfeitado a penas de pavão.

(No Outono, o Sena sussurra melodias de embalar; dizem convocar corações partidos.

Eis alguns exemplos:

  1. Elena Cardailac – desaparecida no Sena a 27 de Outubro de 1879. Não mais foi vista.

  2. Isabelle Marival - desaparecida no Sena a 2 de Novembro de 1945. A 3 de Novembro foi vista, nua, caminhando sob a luz crua da Igreja de Notre Dame.

  3. Adeline Marie – desaparecida no Sena a 17 de Novembro de 1899. A 19 de Novembro saiu do rio e mordeu um homem que passeava na margem. O homem morreu.

  4. Michelle Chapelle – desaparecida no Sena a 29 de Novembro de 1900. Entre os dias 3 e 4 de Dezembro, sentou-se, imóvel, num banco do parque público de Saint Exupéry.)


Marjorie passa em frente ao anexo pardacento onde Krief sacia a fome nas fartas mamas de Nougete. Do outro lado da rua, e através das janelas do Hospital de Saint Exupéry, repara Marjorie, uma enfermeira esbofeteia violentamente uma mulher.

domingo, 27 de março de 2011

Mulher olhando o céu castanho de Outubro através das grades do Hospital de Saint Exupéry, em Paris

Pelas grades do Hospital de Saint Exupéry, em Paris, a mãe de Krief olha agora o céu de um Outubro castanho. Há um sorriso muito bonito a bailar-lhe nos lábios e as pálpebras transmitem a serenidade da contemplação. Subitamente, grita: KRIEF! E pára. De novo: o sorriso: o sorriso da mãe de Krief imita a tranquilidade das folhas de Outubro e saudosamente acaricia as grades do Hospital de Saint Exupéry, em Paris, como acariciasse os dedos de Krief. Opções viáveis: Frio> acaricia as grades do Hospital de Saint Exupéry, em Paris, como acariciasse os dedos frios de Krief; Morte> acaricia as grades do Hospital de Saint Exupéry, em Paris, como acariciasse os dedos mortos de Krief; Mármore> acaricia as grades do Hospital de Saint Exupéry, em Paris, como acariciasse os dedos marmóreos de Krief.


Do outro lado do muro, aquele que separa o Hospital de Saint Exupéry, em Paris, do resto do mundo, o pequeno Krief é amamentado por uma gorda loira sentada na cama de um anexo pardacento. A loira chama-se Nougete; veste espartilho vitoriano e fuma cigarretes brancas através de uma boquilha oferecida pelo conde Henri de Vicariate, assim ele se apresentou. Disse-lhe o conde numa noite de lua cheia, passeando os dois junto ao Sena: Minha cadelinha virtuosa, a luz dos teus cabelos ilumina Paris. Nougete sorriu. Henri de Vicariate pigarreou. Nougete olhou-o amorosamente. Henri de Vicariate cofiou o bigode. Nougete desejou, olhando as estrelas, a eternidade do momento. Henri de Vicariate afinou a voz e trauteou La vie en rose. Nougete desejou fervorosamente um filho de Henri de Vicariate. Henri de Vicariate tropeçou e caiu ao Sena; veio a salvar-se agarrando-se a um barco de recreio. Nougete não mais o viu. Henri de Vicariate não mais a procurou.


No Hospital de Saint Exupéry, em Paris, a mãe de Krief abre o caderno e anota:


Qual das dores a maior: perder o filho que se teve ou não perder o filho que não se teve?


PERGUNTA DE FUNDO: em que altura da história dos homens se transformou a dor em sofrimento?


Na cama do anexo pardacento, Krief alimenta-se sofregamente nas mamas de Nougete - as mamas de Nougette são como cascos de navio.


250 metros a norte, um homem encontra o seu destino. Corre para casa, enche a banheira de água fria e tenta afogar-se. Falha estupendamente. Esse homem é Henri de Vicariate.


 

segunda-feira, 21 de março de 2011

(excerto 5)

Aquela grande casa ficou. Ficou aqui a bater-me na memória. Tia, que casa era aquela? E a tia aparece e explica-me novamente: Aquela era a casa de uma quinta, e desaparece novamente, porque a melodia dela acabou. Ficou-me ainda a mão agarrada a ti, os teus dedos duros, como só ossos, o anel claro e brilhante, grosso, por onde esgotou todo o dinheiro, comprado no ourives, que veio cá a casa e ficou a mostrar-lhe os anéis todos, as pulseiras, lindos colares, grossos, ouro muito fino, abriu a maleta e disse A senhora só tem de escolher, e ficaste a olhar espantada, vejo-o ainda à porta comida pelas pombas, não bem as pombas: pela merda das pombas, abriu o ourives a maleta para deslumbramento da tia, todos os anéis lhe passaram pelos dedos, escolhia um, olhava-o cheio de respeito e depois largava-o cuidadosamente, muito atenta, nem olhava o ourives, fazia tudo como estivesse a mexer no dinheiro dos outros e depois virava lentamente as costas e suspirava, levantava dedo e anel, media-lhe o brilho e perguntava meio à espera de um preço que não poderia pagar: Quanto é? Fechava os olhos do desgosto do preço e o ourives dizia-lhe que não se preocupasse, que pagaria depois, que pagaria por várias vezes, e a tia deslumbrada, cega pelo brilho dos anéis. Só depois de dez visitas, sempre o sorriso safirado do ourives, se decidiu por aquele, um que o ourives apenas trouxe à décima visita, como soubesse desde o início que aquele seria o escolhido. A avó quedava-se também por ali, mais de fantasma que de assunto para tratar: levava o xaile preto e cruzava os braços como dissesse: Eu não percebo nada disso: não percebia mesmo. Sabia apenas o valor do oiro que levava ao pescoço e todas as jóias se diriam comparadas com o fio de oiro: estacava um passo atrás, incomodada com o gasto de dinheiro que dali sairia. Quando o ourives foi embora pela última vez deixou-te uma caixa de veludo que acrescentou valor ao anel: abria-la muito vagarosamente, não desviava nunca o olhar: primeiro espreitavas, depois abrias e confirmavas a permanência do anel, depois mostravas a quem quisesse ver e admirar tão bonito anel: dizias assim: Não é lindo o meu anel, foi o mais lindo que o ourives trouxe, só o escolhi à décima visita, o homem veio cá todos os santos dias com a maleta carregada, e só à décima vez é que eu disse para mim: é este, é este que eu quero, eu sabia por que tinha demorado tanto tempo na escolha, havia um perfeito para mim. Não é lindo, esticavas muito o dedo, favorecias o anel com a exposição ao sol, um gesto altivo de admiração e sorrias percebendo a admiração das pessoas. Esticavas ainda mais o dedo e puxavas ligeiramente a manga da camisola, como fosse coisa que não ajudava ao elogio do anel. Os teus dedos duros, tia, sinto ainda o anel à medida que vamos passando pelas pessoas, tu cumprimentas, dizes boa tarde, e a tua mão e os teus dedos agarram-se aos meus. Que casa é aquela, pergunto de novo (fui buscar-te novamente a memória pelos dedos: estendeu-se ao resto do corpo, à roupa: um casaco ainda de frio, castanho, meio que grosso, daqueles que desconfiam das temperaturas e por isso dão para tudo, uma camisa branca subida ao colarinho e a formar espécie de bordado apertado ao pescoço, e a saia preta, ou quase preta, meias opacas mas a imitar pele, sapatos também pretos para dizer com o preto da saia, os tacões já com salpicos de lama) e tu não me ouviste no meio da pergunta porque só estavas de corpo.