sexta-feira, 15 de abril de 2011

(excerto 7)

Como só mais à frente o suão te levará, a tia está agora contigo, avô. Rodam os botões do fogão para ver se aquilo faz sentido, que as batatas querem uma cozedura exacta, agarras nas tuas mãos, avô, entrelaças os dedos, e com o cotovelo abres a torneira, continuas a rodar os dedos, muito cuidadosamente, como usasses instrumento tomado de alguém: na parede prega-se o cabide e limpas as mãos à toalha. Deve ter sido ainda antes do Santo Amaro, quando o tio levou o braço perto do sol a espreitar a cor do vinho e a tia, contrafeita, recupera a cara de zangada como antes do Santo Amaro. E, Cláudia, apareces meio aos tropeções, como era antes de. A fotografia está meio torta, meio de esguelha, mas não é isso que te impede, o muro está atrás de ti e o copo: branco: uma espécie de manto branco: o quintal da casa acaba numa vedação de arame, logo depois da casinha onde a tia, as videiras fazem uso das folhas para tapar a visão, mas sempre um buraco ou outro, através do qual: a outra casa: pouco se percebe, uma entrada pequena, acanhada, uma janela tosca, vasos de flores e um tapete estendido ao sol no cordão baloiça, espreguiça-se, branco como manto: a Augusta, que sempre o será, mesmo sendo tua mãe, estacionou o carro de pau, a máquina que trouxe a custo de Lisboa, por meio do teu tio que casou com a Josefina (diz-se muito devagar para saborear o nome: Jo-se-fi-na), e dobra-se sobre si mesma, primeiro com as mãos, cose roupa, forma uma pilha ao lado, e faz-se à máquina, pedala com genica e acerta as mãos para esticar a roupa e passar no buraco onde a máquina cose, é muito rápida, parecem os dedos ir e vir, ir e vir, como tivesse nascido com aquele movimento nas mãos, e a pequena Cláudia, que pertencia ao colo da Augusta, apoiava as mãozitas no carro, e tem a cara muito suja, parece a terra ter-lhe nascido nos olhos, e olha profundamente a Augusta: aquela és tu, Cláudia, é Julho, logo depois da ressurreição da avó, é um dia canicular. Cá em casa há muita gente, o portão está aberto, um tapete de flores e alecrim tapa o chão.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

(excerto 6)

As casas acordam aos poucos das nuvens, choveu ainda ontem: ainda ontem: as janelas fechadas, nem os cães na rua, recolheram-se algures, agora é vê-los aparecer, ainda vem o pêlo encharcado cheirando a cão: as janelas abrem timidamente, as caras ressuscitam da penumbra, trazem a sombra agarrada às pestanas e as faces pálidas de quando chove, sorriem timidamente, os dentes mostram-se em sorrisos: Já está sol, vem ver o sol, que dia se pôs para a festa: depois abrem-se ainda mais as janelas como quando se abre a boca para o dentista e ele vê tudo aquilo lá por dentro, ao fundo as amígdalas, as lareiras ainda acesas, as cadeiras e os sofás vermelhos, e os tapetes no chão, e escorre toda esta luz para a rua como que guardada durante a chuva. Bom dia, como está, fulana tal, pergunta a tia, parece que o dia se pôs bom, que isto de chuva não é coisa de se ter numa festa, depois segue caminho, e eu penso-a também como uma fotografia: uma fotografia de boca aberta: não bem uma fotografia: para a tia seriam duas, três ou quatro, de modo a que formássemos imagens animadas – uma imitação da boca a abrir e a fechar continuamente. Como fosse censura o que digo, que não é – era a música que faltava para falar do dia, na tua boca, o dia depois da chuva tinha milhares de cambiantes, infinitas formas de ser dita, ocasionalmente rias porque fulana tal ia vestida daquela maneira, isto ao longe, quando fulana tal ainda não te podia perceber as palavras, quando chegavas perto cumprimentavas muito séria, a cara sóbria, sem ponta de expressão e conseguias segurá-la durante dois, três ou quatro passos.