quarta-feira, 25 de maio de 2011

(excerto 9)

Francisco.


Ainda o meu nome:


Francisco. Dito assim parece muito grande, tão grande quanto: a porta do quarto, uma ou outra camisola, a lã tão fofa, a sacola, e as peúgas, onde as peúgas, mãe?


Francisco.


Prefiro assim: Chico: é lá coisa que se diga, diz a avó - deixa-te estar, avô: falo da bisavó, que diz defender nomes por maiores que sejam, devias saber: é o do pai, do pai dela, o que faz dele meu trisavô: avô, bisavô, trisavô. Parece que lhe caiu seco saco de farinha em cima, branco, muito branco, muito direito e a cadeira. Lívido. Sempre que o penso surge lívido. O Francisco. Lívido como eu e nada contente. Melhor: descontente, desarticulado, diz a avó que ele mancava de uma perna: um dia a trabalhar, pesada barra de ferro estragou-lhe o joelho para todo o sempre, mesmo depois de morrer manca do ferro que lhe ficou gravado no osso. Lembro-me, diz a avó, melhor: a bisavó: Estava em casa e era ainda garota muito pequena, de volta de umas brincadeiras, agora as crianças nem sabem brincar, dantes é que era, que isto agora não presta para nada, quer dizer, nem brincávamos, trabalhávamos, mas quando brincávamos, brincávamos, sabes, Francisco, nunca fui criança nem nada, trouxeram-no uns quatro homens de braçado, ele que era grande como um toiro apareceu pela porta enfezado como um coelho abatido na caça, ainda a pingar sangue, e eu parada sem perceber nada; fiquei tão assustada, o meu pai, o meu pai chamava-se Francisco e nunca mais foi o mesmo, depois disso perdeu o direito a ser homem por inteiro, isto na cabeça dele, até o olhar mudou, era alto, ou melhor, não era alto, parecia muito alto, os ombros puxados para trás, e eu cheguei-me ao pé dele e ele deu-me a mão, lembro-me tão bem, e ele deu-me a mão e riu, riu-me e depois disse-me Está tudo bem, menina, vai lá cuidar das tuas coisas, anda.


A cadeira baloiça vazia.


Ao lado da porta, range por um dos lados e pelo outro aumenta o volume, range muito muito mais, as peúgas, que raio, as peúgas. Em que horas da manhã ia? Era manhã. O chá. A hortelã. A avó. O banco. O sol a nascer. O cheiro. Os sapatos parados da avó. Não me chegou a dizer que o avô foi para o deserto. Disse-me assim: o teu avô foi embora. E o sol a nascer. Não quero saber, avó. Sabes que idade tenho agora? Cresci muito, quando olho para baixo já vejo o mundo de longe, vejo-o de crescido, já não me mete impressão andar com os pés aos tropeções, já nem. E as peúgas, avó. Estava a roupa encolhida a um canto do quarto. O pai também foi logo que a noite se acobardou. Cálculos debaixo do braço, a mala já deve ter o tempo contado, saltou uma alça, a outra faz que resiste, uma tímida linha, quase nem se vê, fica de fora, impune, a resistir ao tempo, e disse antes de ir: Até logo, chego tarde. Deu um beijo à mãe e deixou-a a dormir: nem a dormir: talvez não a dormir: vejo daqui as peúgas – o nome que as peúgas têm -, e a mãe não. Não. A mãe não volta a dormir. Vira-se para um lado, vira-se para o outro. O aro escuro da porta que ficou depois de ires. O aro da porta faz que é a porta inteira, já desapareceu a abertura, fica a roupa pendurada na porta e a mãe: Francisco: vê-me de olhos abertos na cama ao lado porque eu. De muito pequeno. Vai para a tua cama, dizes muito baixo e eu levanto-me e o buraco volta ao aro da porta quando a abro, a roupa atrás. Fecha-se.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

(excerto 8)

Tina, a Françoise afasta-se agora com o pai e com a mãe e comigo pela mão, e olho para trás, para a manta que és, tolhida de frio, dizes Fico bem e acenas, ali está o teu acenar, despedindo-se. Na feira há muita gente, as frutas, os peixes – para quê peixe se uns metros acima o mar? uma cana de pesca, um barco e uma rede e o peixe logo ali, parece tontice -, o pão, os brinquedos, a Françoise, mãos como canguru e o espanto das cores, onde o Armando?, não o tenho por esta memória, por certo na barraca nos frangos, por certo no meio do fumo, por certo por perto. O vermelho dos lábios da Françoise, o jeitinho de um passo à frente de outro passo, como os pés a qualquer momento pudessem cair deslocar-se partir; Françoise: caminhas como quem vai partir pés pernas. A mãe silenciosa, não se encontra aqui o som da mãe a falar, como se desprovida de palavras e de outros sons, uma enorme mãe silenciosa, presente, mãe. O pai segue à frente, leva as mãos nos bolsos, assobia e olha as bancas. A mãe pára, pergunta silenciosa, escolhe isto e aquilo, pega na saca, abre a carteira, tira o dinheiro, recebe o troco, guarda o troco, fecha a carteira, guarda a carteira, e o pai assobia olha vê e diz que sim. As mãos de canguru da Françoise. Pára ela de saltar, escolhe uma lojinha de roupinhas e carteirinhas e malinhas e tudo pequeno, parecem as medidas encolhidas, Françoise: és assim tão pequena?, e contempla admira observa estuda analisa examina. A vendedora: O que vai ser, menina? A Françoise:             . A vendedora: A menina precisa de ajuda? A Françoise:            . Françoise, apressa-te a falar, e se não souberes aponta, desembrulha as mãos de canguru. A Françoise aponta e a mulher recolhe uma malinha vermelha azul laranja. A Françoise abre a carteira tira o dinheiro entrega o dinheiro recebe o troco guarda o troco, o Armando aparece e diz-lhe. Vou proibir-te de falares assim também, Armando. Eu sigo pequeno, a mãe silenciosa tem-me pela mão, uns três quatro cinco anos, não sei se mais, parecem as memórias deslocadas da idade. Agora já posso falar do pónei cavalo, Tina. Depois da feira e da praia e da areia, nada de particular em falar da areia, ainda os lábios roxos, Tina. Ainda me cansará teu nome; imagina, sempre Tina, é um exagero.